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Histórico do grupo e concepções de análise fílmica

Diversos são os resultados dos seminários e horizontes comuns de pesquisa, articulados pelo grupo CineArte entre os anos 2017-2021, coordenado por Fábio Uchôa, Pedro Plaza Pinto e Margarida Adamatti. O grupo surge em 2017, com o objetivo de unir indagações sobre a análise fílmica e o trabalho com documentação decorrente de pesquisas em arquivos. Sua proposta inicial, e em constante questionamento, unia essas duas vertentes, nomeadas como Práticas de análise audiovisual e Análises e arquivos audiovisuais. Desde suas origens, o grupo dedica-se às teorias e práticas de análise de filmes, aplicadas ao cinema e a outras mídias audiovisuais, tomadas em sua diversidade artística, histórica, política e arquivística. Entre as possibilidades existentes, encontram-se a análise imanente, a inspiração em modos de abordagem historicamente consolidados, o trabalho com materiais de arquivos, ou ainda, a transposição de práticas entre diferentes campos, abrindo-se à constante criação, suscitada pelas aproximações entre objetos e teorias. A vertente de Práticas de análise audiovisual inclui o mapeamento de teorias do audiovisual, testadas em seus potenciais analíticos, promovendo renovados olhares, teorizações e construções sistêmicas. Trata-se de abordagens que podem acompanhar a história do audiovisual, identificando as relações com os respectivos contextos, escolas, autorias e formas de análise. A linha Análises e arquivos audiovisuais enfatiza estudos construídos a partir de pesquisas em Arquivos e Cinematecas. São de interesse aportes de análise, no trato com materiais associados a processos de preservação, restauro e difusão, ou então, tomados em pesquisas sobre trajetórias de intelectuais, críticos e instituições.[1]

Ao longo de seus primeiros anos de existência, o CineArte dedicou-se à leitura de materiais de referência sobre análise fílmica, cotejando esse trabalho com conferencistas convidados e projetos de extensão, voltados à análise coletiva ou ao debate teórico. Nesta senda, em articulação com o Centro Cultural SESI Heitor Stockler de França (Curitiba) e a disciplinas ministradas por Pedro Plaza Pinto no PPGHIS/UFPR, foram organizados seminários contínuos, com destaque a três eventos: o Seminário de crítica de cinema e pesquisa (2019), o Encontro de cinema crítica e política (2019) e o projeto do Encontro de cinema fotografia e pesquisa (2020). Entre tais encontros e as conferências internas ao grupo, as atividades envolveram a presença de 16 pesquisadores convidados, provenientes de 10 diferentes instituições de pesquisa, brasileiras e internacionais.

 

Paralelamente, a leitura de textos de referência sobre análise fílmica permitiu mapear duas frentes de referência, que merecem uma descrição mais detida, por sua relação intrínseca com as metodologias visitadas em Cinema, estilo e análise fílmica, às quais são somadas as experiências dos pesquisadores do CineArte, com trajetórias especialmente associadas às áreas de comunicação e de história. Numa primeira vertente, centralizada em Jaques Aumont, a análise fílmica inclui entre suas origens a abordagem imanente proposta em À quoi pensent les films,[2] propondo-se como atividade acadêmica e sistemática em A análise do filme.[3] Apesar de essa atividade poder remontar às do cinema, na França a análise fílmica associa-se ao “aparecimento entre 1965-70, de um contexto universitário ou para-universitário, em estreita ligação com os primórdios de uma teoria moderna do cinema, de um tipo de análise mais minuciosa, mais sistemática”, por vezes denominada de “análise estrutural”, que seria um de seus pontos de partida.[4] Com consolidação mais forte a partir dos anos 1970, atualmente a análise fílmica, amplamente conhecida, de acordo com Aumont e Marie, se aproximaria da “seriedade e rigor das disciplinas humanísticas mais tradicionais”.[5] Pelo fato de não existir uma teoria unificada para o cinema, tampouco haveria um método universal de análise. Contrapondo-se à construção de uma receita, Aumont e Marie fazem um inventário daquilo que consideram as principais ferramentas e possibilidades metodológicas. Em sua definição mais ampla, a análise é um tipo de discurso sobre os filmes, realizado a partir de um olhar analítico que, diferente da avaliação e atribuição de juízos de valor próprios à crítica cinematográfica, ao contrário, busca produzir conhecimento. O analista, assim, “(...) propõe-se descrever meticulosamente seu objeto de estudo, decompor os elementos pertinentes da obra (...)”.[6] Se analisar é também teorizar, tomando-se a obra como ponto de partida, “não existem senão análises singulares, inteiramente adequadas no seu método, extensão e objeto, ao filme particular de que se ocupam”.[7] Apesar da abrangência, algumas das inspirações para Aumont e Marie são claramente sugeridas: Eiseinstein e sua capacidade formal de demonstrar por desenhos as tensões plásticas de uma sequência de O encouraçado Potemkin; as fichas filmográficas do IDHEC - Institut des Hautes études cinématographiques[8] tendo entre seus redatores André Bazin; além da política dos autores e o método interpretativo dos Cahiers du Cinéma nos anos 1950. Entre tais referências, nota-se uma certa oposição ao clássico, afirmando o moderno como referencial para Aumont e Marie. No início de A análise do filme, tais autores fazem uma didática enumeração de instrumentos de análise, divididos entre os movimentos de descrição, citação e documentação. Adequando-se às exigências dos próprios filmes, tais movimentos incluem opções descritivas (como a descrição plano a plano ou a segmentação em unidades narrativas), as possibilidades citacionais (dedicadas ao ato de trazer o filme ao texto analítico), bem como os instrumentos documentais, exteriores ao filme, associados à produção ou difusão em seu contexto histórico de origem. Na senda de Aumont e Marie, a partir de um recorte específico, Manuela Penafria redige Análise de filmes - conceitos e metodologias (2009), indicando que “é comum aceitar que analisar implica duas etapas importantes: em primeiro lugar decompor, ou seja, descrever e, em seguida estabelecer e compreender as relações entre tais elementos”.[9] A pesquisadora sugere também que o objetivo da análise une os atos de “explicar/esclarecer o funcionamento de um determinado filme e propor-lhe uma interpretação”.[10] Assim como Aumont e Marie, indicará um leque de abordagens possíveis, incluindo análise textual, análise poética, análise de conteúdo, e por fim, a análise da imagem e do som.  Embora Aumont, Marie e Penafria optem pelo mapeamento de leques de análises, há autores que indicam propostas mais delimitadas, com maior ênfase à forma de análise, com seu passo a passo de acordo com as naturezas dos objetos.

 

Também entre as leituras realizadas pelo CineArte, David Bordwell possui extensa pesquisa sobre o cinema em geral e acerca do classicismo hollywoodiano em particular. Com esse recorte, dentro da obra de Bordwell, pode-se destacar um conjunto de procedimentos analíticos, partindo da narrativa clássica como um conjunto de opções para “representar a história e manipular a composição e o estilo”[11], e os respectivos desdobramentos metodológicos presentes em A arte do cinema - uma introdução.[12] Para Bordwell, o espectador do cinema clássico não se encontra relegado a uma máquina totalizante, tratando-se de um sujeito ativo, que constrói hipóteses ao longo da exibição de um filme, a partir de informações pré-existentes e da forma pela qual o enredo gerencia os elementos da história. Entre os principais traços da narrativa clássica, Bordwell indica a centralidade dos personagens, como agentes causais, “indivíduos empenhados em resolver um problema evidente ou atingir objetivos específicos”.[13] Trata-se de um “agente de causa e efeito”, cujas ações podem assumir lógicas específicas e determináveis, a partir de padrões construídos por elementos relacionados à narrativa e ao estilo. Com a sistematização de uma proposta de análise, no capítulo “A narrativa como sistema formal” Bordwell e Thompson[14] propõem passos e níveis, tendo por foco o sistema narrativo. Assim, parte-se inicialmente das expectativas, incluindo a associação de um filme a possíveis gêneros audiovisuais, para posteriormente passar à identificação do trajeto do personagem, pela segmentação do filme e a definição de como o enredo gerencia as informações da história. Posteriormente, mantendo-se o personagem como centro, a análise avança a outros níveis da narrativa, buscando identificar recorrências, em termos das causalidades, tempos, espaços, bem como definir possíveis padrões de desenvolvimento do enredo.

 

As duas tendências aqui pensadas, seja via Aumont e Marie que tomam o filme como ponto de partida para uma rede de possibilidades metodológicas existentes, seja via Bordwell com sua concepção da narrativa como sistema formal, complementam-se entre os capítulos do livro Cinema, estilo e análise fílmica, publicado pelo grupo. A elas, extrapolando as leituras realizadas pelo grupo CineArte, somam-se outras possibilidades de análise, em particular aquelas influenciadas pelas ciências humanas, pensadas a partir de diferentes cotejos entre obras e contextos histórico-sociais. Como recorte específico para o referido livro, somando-se ao percurso bibliográfico sobre a análise de filmes, foi escolhida a noção de estilo, por ser uma categoria analítica e passível de interpretação histórica, articulando, assim, as duas linhas de pesquisa do CineArte até os anos 2019. A partir do segundo semestre de 2020, o grupo transferiu-se de instituição, passa do a funcionar no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, com a ampliação de algumas de suas frentes de pesquisa, em particular com a criação do I Simpósio Internacional de Cinema e Análise Fílmica (2021)

 

Ao longo dos próximos tópicos, realizaremos um trajeto teórico-metodológico, pertinente às relações entre estilo, análise fílmica e política, questões essas fundantes do grupo e que, ao mesmo tempo, levaram à criação do I Simpósio Internacional de Cinema e Análise Fílmica (2021).  

Estilo e recorrências formais

A concepção de estilo e sua aplicação à análise fílmica constitui, assim, o elemento integrador dos capítulos do livro Cinema, estilo e análise fílmica, sendo que cada autor(a) mobiliza as teorias de acordo com os objetos envolvidos, de maneira a contribuir com os estudos específicos das obras audiovisuais analisadas.

 

O debate do estilo envolve pesquisas interdisciplinares, originalmente em torno da história da arte, da arquitetura e da linguística, com gradações variáveis entre um olhar formalista e a análise do contexto sociopolítico como atitude metodológica das obras analisadas. Face ao número ilimitado de pesquisas dedicadas à análise estilística de filmes específicos, esta introdução se concentra nas obras teóricas de cinema que propõem métodos de análise estilística, fazendo menções pontuais aos estudos de referência de outros campos do saber, em particular às heranças e ao ponto de partida representado pela história da arte.

 

Se a questão do estilo no cinema ganha espaço teórico espacialmente a partir da segunda metade do século XX, com Bazin e os Cahiers du Cinéma, na teoria das artes o debate remonta ao século XIX. Desde esse período, no contexto da Escola de Viena, historiadores da arte como Alois Riegl e Henrich Wölfflin colaboram com uma teoria da visibilidade pura, compartilhando a importância da visualidade e a possibilidade de padrões próprios a épocas, para a definição do estilo. Trata-se de um foco na capacidade expressiva da arte, a despeito dos desenvolvimentos técnicos, influências sociopolíticas ou trajetos biográficos dos artistas. Generalizando-se, tais teóricos, com sua preocupação em tendências expressivas e padrões de representação, permitem abordar a história da arte essencialmente como uma história dos estilos. Artistas de uma determinada época poderiam ser pensados a partir de padrões estilísticos em comum, ou por meio de esquemas explicativos e dualidades dicotômicas. Partidário de um esquematismo mais radical, Wölfflin propõe um tratado de conceitos visuais com tendência universal, passíveis de serem utilizados para pensar diferentes momentos e sociedades, em particular entre o Renascimento e o Barroco na Europa. Assim, em Conceitos fundamentais da História da Arte, o teórico incluirá as tensões entre linear e pictórico, plano e profundidade, forma fechada e forma aberta, pluralidade e unidade, ou então, clareza e obscuridade, tomando na perspectiva de uma história das formas que nunca deixaria de evoluir: “Não há dúvidas de que certas formas de visão são prefiguradas como possibilidades: se elas chegam a se desenvolver, e o modo como o fazem, dependerá das circunstâncias externas”.[15] No bojo de tal processo evolutivo, Wölfflin procura também articular estilo individual, estilo nacional e estilo de uma época, concebendo o estilo sobretudo como expressão do espírito de uma época, de uma nação, bem como de um temperamento individual. Numa vertente com menos aversão à historicidade, Alois Riegl tende ao estudo de um estilo a partir do confronto com outros, precedentes ou sucessores, em um mesmo âmbito histórico-social, entendendo as singularidades a partir do contraste. Seu método preocupa-se, do mesmo modo, com as relações internas ao estilo, mas também associadas à sociedade e aos possíveis padrões de pensamento da época, não restrito ao campo das artes visuais. Riegl verifica dicotomias visuais, tomando-as como caminho para a compreensão da visão de mundo de uma época. Para isso, o conceito de vontade de arte (Kunstwollen), que se manifestaria nas diferentes expressões artísticas de uma época – sejam visuais, dramáticas ou sonoras – e se modificaria na passagem entre grandes períodos e os respectivos padrões de percepção visual. A vontade de arte “regula a relação do homem com o palpável, com a manifestação sensível das coisas. Trata-se da expressão da forma específica, pela qual cada homem deseja que as coisas sejam moldadas ou coloridas”.[16] Na senda do formalismo, Erwin Panofsky fará a crítica às interpretações psicológicas do Kunstwollen, defendendo-o como “um conceito imediatamente derivado de cada fenômeno artístico”[17], relacionado à percepção artística e sua estrutura formal lógica, vinculando-o posteriormente à sua preocupação com a significação nas obras de arte. Referindo-se a Panofsky, na introdução de Trois essais sur l´style, Lavin sugere: “Para ele, o estilo deveria ter um papel expressivo, evocando constantemente o tema das obras de arte, sua ‘iconografia’ (...). Pode-se afirmar que a primeira preocupação de Panofsky (seu último princípio heurístico de interpretação) era ilustrar a maneira pela qual o estilo, ou forma expressiva, dá seu sentido ao tema, relacionando assim a obra de arte e o conjunto de fatores extra-estilísticos que condicionam a sua criação”.[18] Ou seja, em Panofsky, as relações entre o estilo e sentido a ele atribuído encontram na base de sua formulação histórica. Em solo americano e num período mais recente, adotando uma postura em diálogo com o formalismo, Meyer Schapiro[19] define o estilo como um sistema de formas, baseado num conjunto de recorrências, padrões e qualidades significativas, que são apreensíveis diretamente das obras de arte. Nesse sentido, a investigação sobre o estilo busca as correspondências formais ocultas que remetem a um princípio organizador e determinante das partes como padrão de totalidade.

 

No campo do cinema, David Bordwell[20] desenvolve um extenso estudo sobre a história da estilística adaptado à análise fílmica, algumas vezes em regime de co-autoria com Kristin Thompson[21] e com Janet Staiger.[22] As obras desenvolvem e aprimoram os métodos de análise estilística ao cinema em diversas vertentes: aplicadas a filmes específicos, às recorrências formais em perspectiva histórica e aos procedimentos técnicos coletivos da indústria hollywoodiana ao longo das décadas.

 

Bordwell define o estilo como a “textura das imagens e dos sons de um filme” através do “uso sistemático e significativo de técnicas da mídia cinema”.[23] Nesse sentido, o conceito seria o resultado das escolhas técnicas empreendidas pelos cineastas em circunstâncias históricas específicas. Atentos aos métodos de integração entre a análise fílmica e a concepção de estilo, Kristin Thompson e David Bordwell[24] descrevem as etapas para localizar as recorrências estilísticas. O primeiro passo para a compreensão da composição de um filme é determinar sua estrutura organizacional, as técnicas proeminentes e seu papel no efeito geral da obra. Buscando encontrar o padrão técnico audiovisual, na sequência, o analista irá propor funções para as recorrências observadas. A partir dessas etapas, o pesquisador pode observar como se deram as escolhas técnicas em sistemas fílmicos inteiros, através desses princípios de regularidade, seja de um cineasta, conjunto de realizadores ou de um período histórico. Dessa forma, a compreensão do sistema formal do filme é feito através do estudo detalhado da interação entre as técnicas.

 

Bordwell[25] propõe escrever a história do estilo cinematográfico através de uma “rede de problemas e soluções”, como maneira de tentar reconstituir as escolhas dos cineastas num determinado contexto de produção. Segundo o autor, na tarefa de reconstrução baseada em filmes remanescentes e em outros documentos, o “modelo de produção/problema” não procura por ascensões, quedas e declínios, não se atém às teleologias totalizantes, nem se compromete “com um delineamento preciso de uma mudança generalizada”.[26]

 

Das diversas abordagens propostas por Bordwell em suas obras, sobressai no livro Cinema, estilo e análise fílmica a investigação da história do estilo cinematográfico, a partir de mudanças e continuidades estilísticas numa perspectiva histórica. Em Figuras traçadas na luz, Bordwell observa como a continuidade e a descontinuidade estilística podem ser boas aliadas da poética do cinema. Enquanto isso, na obra Sobre a história do estilo cinematográfico, Bordwell realça a continuidade e as particularidades técnicas de alguns procedimentos, como a encenação em profundidade, em contextos históricos diferentes. Nas duas obras supracitadas, a concepção de continuidade estilística de Bordwell em variados períodos históricos difere sobremaneira da perspectiva de historiadores da arte como Meyer Schapiro.[27] Para este último, o estilo é um dado formal único a uma cultura e a uma época, impossível de ser produzido noutro período histórico ou contexto. Se há diferenças conceituais entre os dois autores, grosso modo, o que aproxima a perspectiva formalista sobre o estilo é o estudo das recorrências formais.

 

Tal dicotomia formalista, pensada como a tensão entre a visão de uma época e o estilo como criação de categorias universalizantes, terá influências sobre a teoria francesa recente. Isso pode ser pensado, por exemplo, a partir de um cotejo dos estudos O olho interminável: cinema e pintura de J. Aumont[28] e Styles filmiques de Frank Curot.[29] Partindo da modernidade do século XX, Aumont mapeia diversas manifestações do cinema a partir dos desdobramentos de um “olhar móvel”, visão de uma época, compartilhado entre pintura e cinema. Curot, por sua vez, defende uma história dos estilos cinematográficos construída nas tensões entre “generalização e individualização”, entre movimentos coletivos e obras individuais. Para tanto, recorrerá inicialmente a uma constelação de categorias formais, entre as quais inclui componentes estilísticas do espaço, do tempo e componentes extraídos de outras artes, vistas a partir de uma exemplificação que retira as obras de seus respectivos contextos. 

Autoria e mise en scène

Como desdobramento da pesquisa sobre o estilo no cinema, muitos capítulos do livro Cinema, estilo e análise fílmica realçam em graus variados os intercâmbios entre estilo, autoria, mise en scène e o diálogo com o pensamento cultural e artístico em determinados períodos históricos. Através dessas conexões, busca-se integrar o estudo da temática e da forma fílmica ao universo criativo dos cineastas. Ao longo das décadas, a compreensão do cinema sob a ótica da autoria e da mise en scène ocupou um lugar de destaque nas pesquisas audiovisuais como possibilidade de compreensão da singularidade estética das obras canônicas.

 

Dentre as extensas definições de mise en scène, David Bordwell[30] define o termo como derivação da concepção teatral, isto é, o mettre en scène como o “montar a ação no palco que implica dirigir a interpretação, a iluminação, o cenário, o figurino”[31]. Para o autor, a mise en scène integra a definição de estilo ao lado do enquadramento, da montagem e do som. Se há concepções mais globais do conceito que incluem o trabalho de montagem e da trilha sonora nas atribuições relativas ao cineasta, no livro Figuras traçadas na luz, Bordwell seleciona para a análise apenas os elementos relativos à direção do cineasta durante a filmagem: o cenário, a iluminação, o figurino, a maquiagem e a atuação dos atores dentro do quadro. Indiretamente tomando como modelo a divisão padrão de trabalho da indústria cinematográfica, o conceito exclui a montagem e a trilha sonora porque geralmente essas atividades não são executadas pelo realizador.

 

Nem sempre a definição da mise en scène realça as recorrências técnicas relacionadas ao estilo. Antoine de Baecque[32] prefere sublinhar o conceito como a conversão do pensamento cinematográfico em imagens. A definição parece em sintonia com os debates sobre a autoria e a política dos autores na revista Cahiers du Cinéma. Enquanto a origem do debate sobre a autoria no cinema retomou o comparativo com o trabalho do escritor literário, segundo Jean-Claude Bernardet[33], a política dos autores realizou uma apologia ao autor pela capacidade do cineasta exteriorizar sua expressão pessoal e visão de mundo através dos filmes.

 

A primeira formulação sobre a autoria cinematográfica foi publicada por Alexandre Astruc na revista L’écran Français em 1948. O texto pode ser visto como um mito de fundação da autoria no cinema. Voltado a consolidar a legitimidade artística do cineasta no comparativo com o escritor, Astruc propõe o conceito de câmera-stylo (câmera-caneta) como a maneira de o cinema se tornar um “meio de escrita tão flexível e sutil como o da linguagem escrita”, capaz de “exprimir” o “pensamento” do artista, “por mais abstrato que ele seja” [34]. [35] Se o autor expressa seu pensamento por meio de imagens, é possível observar uma similitude de conceitos sobre a mise en scène entre Astruc e Baecque.

 

O artigo de Astruc desenvolveu de maneira sutil um conceito abrangente de autoria, que depois foi redimensionado e transformado pela política dos autores da revista Cahiers du Cinéma. A publicação tornou célebre a proposta dos futuros realizadores da Nouvelle Vague, embora o editor-chefe da revista, André Bazin, tivesse divergências internas com sua equipe em pontos cruciais, como o emprego da análise temática para deslindar a autoria dos realizadores e a eleição de cineastas da cultura de massa ao panteão de autores[36]. O grupo ocupou lugar proeminente na crítica de cinema, reafirmando o direito de exercer apenas o estudo interno das obras, num período de imensa politização do campo cinematográfico francês. Como formalistas que escolhem a mise en scène como norte de análise, o lema dos jovens críticos de Cahiers era sintetizado na frase de Luc Moullet: “a moral é uma questão de travellings”.[37] Em plena Guerra Fria, o debate polarizava o interesse crescente pela estética por parte dos Jovens Turcos ante aos imperativos políticos sublinhados no período. Vistos como neoformalistas de direita pelo historiador George Sadoul, a polêmica antecipava uma das maiores questões em torno do estilo: a tensão entre a estética do cinema e o engajamento. Esse duplo enfoque estará presente no livro Cinema, estilo e análise fílmica na atenção contínua aos padrões estilísticos, ao contexto social e às motivações políticas dos cineastas envolvidos.

 

Se os Jovens Turcos não formularam um texto com definições precisas sobre a autoria e a política dos autores, Jean-Claude Bernardet[38] observou nos artigos de Cahiers du Cinéma que a definição de mise en scène envolvia os elementos que contribuem para a elaboração dos planos, tais como o movimento de câmera, a iluminação, a marcação de cena e a direção dos atores, sem incluir a montagem, a música, o diálogo e os ruídos. Segundo o autor, na atualidade o conceito poderia ser substituído pela noção de estilo. Sem instrumental suficiente para decompor os filmes, na prática muitas vezes os Jovens Turcos deixaram de lado a análise estilística e optaram pelo estudo temático, que era uma tradição francesa na área da literatura e do teatro. Entre os três critérios mais importantes para localizar a mise en scène, Bernardet observa: a concepção de unidade da obra como princípio básico da noção de autor; a matriz enquanto pensamento do cineasta confirmado a cada nova obra; e a repetição como caminho para encontrar as recorrências formais.

 

Se no cinema o debate da autoria ganhou destaque ao longo das décadas, essa perspectiva não foi compartilhada por todos. Bordwell se opõe à política dos autores por realçar a interpretação das obras e não as recorrências formais, compondo uma concepção “a-histórica” do estilo cinematográfico como uma “coleção atemporal de grandes filmes”.[39] Sem mencionar o termo, a concepção de estilo destinada unicamente a um autor é vista por Schapiro[40] como dotada apenas de sentido valorativo ligado ao gosto. Sem interagir com a cultura, nem refletir sobre o pensamento e o sentimento coletivo, para Schapiro importa muito mais como as formas e qualidades compartilhadas por todas as artes são capazes de manifestar a totalidade da cultura.

Autoria, política e contexto

             

Mesmo os autores do campo formalista, como Bordwell e Schapiro, observam como o estudo do estilo não deve se comprometer com explicações decorrentes apenas de ordem formal. Bordwell[41] observa como muitos estudiosos relacionam as mudanças técnicas a outras mídias, práticas não artísticas e alterações de ordem política e social. Se o autor admite que esses fatores também são relevantes, ele considera pouco provável que as escolhas técnicas venham “diretamente” da cultura. Na mesma linha, Schapiro[42] abre uma ressalva para incorporar o componente cultural na sua definição técnica, quando descreve o estilo como veículo dos significados principais da obra de arte, por sua capacidade de fixar atitudes mais amplas em relação ao pensar e ao sentir. A questão teria tido o mérito de trazer níveis de sentido antes insuspeitos para a discussão. Aberto às interações possíveis com o imaginário social, o autor aborda o estilo enquanto concretização ou projeção de disposições emocionais e hábitos de pensamento comuns a toda cultura. Para empreender esse tipo de análise seria necessário, segundo Schapiro, propor uma correlação entre a concepção de estilo com as concepções de mundo e conceitos filosóficos, culturais e sociais aptos a revelar as formas de pensar e sentir. De acordo com o autor, as tentativas de explicar o estilo como expressão artística de uma visão de mundo ou modo de pensamento são demasiadamente vagas, implicando com frequência numa drástica redução da concretização e riqueza da arte. Opondo-se à metodologia dos estudos materialistas por serem “esquemáticos” há uma visível disputa simbólica entre os formalistas e outras linhas voltadas aos cotejos com o contexto ou com as formas de produção materiais.  

 

Na outra ponta, descrevemos nessa introdução os estudos capazes de articular a forma artística ao contexto e aos componentes sociais, especialmente no campo da análise fílmica. Retomando o debate em torno da autoria do tópico anterior, o editor chefe da revista Cahiers du Cinéma, André Bazin[43], desenvolveu ao longo de sua obra uma argumentação estética extremamente sofisticada, capaz de incorporar de maneira sutil a política e o engajamento através de menções à ética e às recorrências formais entre os realizadores modernos. Observando a existência de um estilo individual, coletivo e anônimo ao longo dos textos, o teórico francês demonstrava como a forma dos pioneiros do cinema era criada através do diálogo com outras áreas da cultura. Dessa forma, Bazin atrelava uma concepção de estilo não só à discussão do específico cinematográfico, mas especialmente em relação ao contexto e ao diálogo entre as mídias.[44]

 

Se a mise en scène foi o principal método de análise nos anos cinquenta levado a cabo pela Cahiers du Cinéma, a partir do final dos anos sessenta a ferramenta sofreu com um declínio conceitual, preterida na própria fase maoista da revista francesa pela defesa do cinema moderno, pela disjunção entre som e imagem e pela decifração das significações políticas implícitas no discurso cinematográfico. Indiretamente as linhas de força entre a estética e a política sofriam um reequilíbrio em direção ao engajamento dos cineastas, tendo Jean-Luc Godard como principal símbolo dessa mudança. Com um peso cada vez maior ao contexto social, os estudos cinematográficos sobre a autoria tiveram uma guinada em direção à política.

 

Nos anos sessenta, com o surgimento dos cinemas novos ao redor do mundo, os cinemanovistas Glauber Rocha e Gustavo Dahl discutiam em primeira mão as implicações entre autoria e política, incorporando à sua trajetória um caráter de missão e função social. Se para Glauber Rocha, a política do autor moderno é responsável pela verdade e por uma política revolucionária, Gustavo Dahl também propôs um conceito de autoria original por meio da política. De acordo com Jean-Claude Bernardet[45], a conexão traçada entre política, autoria e responsabilidade social de Dahl foi inédita e impensável em relação ao conceito desenvolvido em Cahiers du Cinéma. Para o crítico-cineasta, a questão central da autoria envolvia o sentimento do artista como responsável pelo mundo em que vive. Dizia Dahl ainda em 1966: “não era mais o caso de julgar o artista pela agudeza ou justeza de sua percepção da realidade, mas pela agudeza ou justeza de seu juízo sobre esta mesma realidade. Sem deixar de ser físico o cinema tornou-se moral, sem deixar de ser estético o cinema tornou-se ético”.[46] Era exatamente a partir da extensão do conceito de modernidade à responsabilidade política e social do cineasta, que Dahl defendia o cinema autoral moderno.

 

Naquele contexto, o cinema era visto como uma importante arma de alteração da ordem social, desdobrando-se na atitude engajada de vários realizadores. Ao mesmo tempo, as discussões sobre o papel do intelectual numa cultura participativa, através das obras de Antonio Gramsci, Jean-Paul Sartre, Antonio Candido, Florestan Fernandes, Paulo Emilio Salles Gomes, Jean-Claude Bernardet, são fundamentais para observar uma integração entre a cultura política engajada e o universo criativo dos realizadores.

 

Também à luz das intersecções entre a modernidade cinematográfica e a construção do intelectual engajado, na segunda metade dos anos 1960, Pasolini formaliza sua perspectiva sobre o cinema moderno, pensado como cinema de poesia. Na primeira parte de seu trajeto teórico, desde os anos 1950, o intelectual volta-se à filologia e à poesia, trabalhando diretamente com as coexistências sociais e linguísticas italianas, especialmente a partir do estudo de dialetos, ou por seu olhar atento ao abismo social e às populações romanas excluídas.[47] Assim, em Passione e ideologia, Pasolini propõe uma abordagem da “poesia popular”, tomando-a como o resultado das relações entre classes, a partir das incorporações das linguagens das classes altas e pelas classes populares. Para isso apropria-se da noção hipotética de “bi-linguismo”, que inclui descompassos sociais e estilísticos, avançando à ideia de um “bi-estilismo sociológico”[48], unindo estilo e contexto social. Nessa senda, fará uma ampla análise dos diversos dialetos da Itália identificando seus respectivos traços estilísticos e descompassos. Nos anos 1960, reafirmando uma atenção às coexistências e ambiguidades, o poeta e cineasta formula sua ideia de cinema de poesia,[49] baseado nos diálogos com o estilo indireto livre. Para ele, o cinema moderno seria marcado por ambiguidades entre a forma da narrativa e o ponto de vista dos personagens, com seus desajustes diante do mundo. Em termos interpretativos, o estilo indireto livre poderia ser uma espécie de “tapete persa”, uma fusão de almas e de mundos, escrita a partir da poesia “que nasce da contaminação, do choque entre duas almas por vezes profundamente diferentes”[50], por vezes referido como forma de análise da própria luta de classes nos respectivos contextos históricos. Para além do cinema de poesia, pode-se identificar na crítica cinematográfica de Pasolini uma metodologia crítica fortemente alicerçada pelo contexto. Em alguns de seus escritos o ponto de referência inicial será a sociedade, havendo, por exemplo, a associação de A doce vida (1960) de Fellini a uma cultura decadente-cosmopolita, também presente na literatura italiana da época. Em seu Empirismo eretico os diálogos com Gramsci e, posteriormente com Goldman, são francos, chegando-se, inclusive à noção goldmaniana de homologia - entre estrutura do romance e a estrutura social. Pasolini, porém, com base em sua definição do cinema moderno como estilo, indica que as homologias não deveriam ser buscadas nos conteúdos sócio-psicológicos, mas na estrutura linguística ou estilística das obras analisadas. Se para o caso do cinema clássico, ou de prosa, Pasolini impõe restrições à homologia, deduz-se que para o cinema de poesia, a partir de seu estilo, seria possível identificar confrontos e diferenças, em termos psicológicos e sociais, a partir das características oníricas, bárbaras e agressivas próprias às origens da sétima arte.[51]   

 

Se esse debate é muito extenso para a introdução do livro, a principal referência para articular o contexto e a estrutura interna de uma obra artística será Antonio Candido.[52] Opondo-se, ao mesmo tempo, à perspectiva purista que despreza a dimensão histórica para defender a autonomia completa da obra de arte, e ao viés determinista do contexto sobre a produção artística, o autor analisa como a realidade poderia se transformar em componente da estrutura literária. Integrando os dois polos, Candido observa como o contexto social e a produção artística não podem ser desconectados porque ambos são indissociáveis.

 

Enquanto os fatores internos constituem a estrutura da obra, Candido investiga como a composição externa também pode se tornar agente da estrutura interna, acrescentando-se ao valor estético. Sem precisar citar os dados sociais na materialidade artística, os princípios estruturais da sociedade manifestam-se tanto na composição do todo, quanto nas partes da obra. Num tipo de interação recíproca, os elementos de ordem social são filtrados através de uma concepção estética. Dessa forma, a interpretação estética pode assimilar a dimensão social como fator da arte. Antonio Candido observa que somente através do estudo formal é possível apreender os aspectos sociais e a singularidade artística.

 

A partir da matriz de pensamento de Antonio Candido e das conexões traçadas por ele e por Paulo Emilio Salles Gomes entre estética e política na revista Clima, indicamos de maneira breve uma genealogia de estudos que se desenvolveram entre a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e a Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo no campo do cinema, capazes de entrelaçar de maneira sofisticada as recorrências formais, a ação do contexto e a análise fílmica. Embora a história da estilística não seja o principal objetivo destes trabalhos, enquanto método a questão do estilo individual ou coletivo está implicada de maneira original à análise fílmica.

 

As críticas de Jean-Claude Bernardet nos anos setenta incorporavam através da escrita ensaística o debate sobre o conceito de estrutura de Antonio Candido.[53] Em 1965, na Universidade de Brasília, o autor foi impedido de defender sua dissertação de mestrado orientada por Paulo Emilio Salles Gomes, por causa da invasão do campus pelos militares. Dois anos depois era publicado o livro Brasil em Tempo de Cinema, resultado desta pesquisa, que se tornou em pouco tempo uma referência aos realizadores e um método de análise fílmica muito mobilizado pelos críticos dos anos 1970. No livro, Bernardet[54] não parte da concepção de autoria da fase amarela da Cahiers du Cinéma, mas discute a formação de um trabalho coletivo dos realizadores dos anos 1960, que estaria presente no cinema artístico, de gênero ou comercial, e até mesmo em cineastas com propostas estéticas e políticas muito divergentes. Examinando as recorrências formais e temáticas como um tipo de estilo coletivo, Bernardet observa uma homologia entre as obras e a estrutura categórica significativa de Lucien Goldman, isto é, a estrutura de pensamento de um grupo[55]. De maneira extremamente sofisticada, o sociólogo francês propunha examinar como a situação histórica de um grupo ou classe social e sua visão de mundo podiam ser transpostas à estrutura literária, filosófica e teatral. Bernardet aplica o conceito goldmaniano de homologia das estruturas significativas à produção cinematográfica dos anos sessenta, especialmente a do Cinema Novo. Atento à materialidade fílmica, o autor articula na análise fílmica os debates do contexto em torno da cultura do nacional popular, da classe social dos cineastas, avaliando como as ambiguidades políticas dos realizadores estão presentes no enredo e na forma dos filmes.

 

Mantendo uma sofisticada linha de articulação entre contexto, estilo e análise fílmica, a vastíssima obra de Ismail Xavier empreende enquanto metodologia um esforço de apuração da análise formal, a partir de um movimento que se inicia sempre pelos filmes, e não o contrário. Nas entrevistas concedidas para as revistas Contracampo e Rebeca, Xavier[56] explica que procura encontrar os nexos entre cinema, estética e sociedade na forma fílmica por meio da análise imanente. Na introdução do livro Sertão mar, o autor descreve como se amparou na escolha de categorias descritivas em torno de elementos técnicos para marcar “identidades e rupturas” capazes de aproximá-lo da “textura do filme” e da interpretação.[57] Graças ao movimento interno do filme e por meio do contato com as obras, é possível articular o estudo sobre as vozes narrativas, a análise do enredo e das características entre som e imagem, etc., ao “contexto da produção do filme e sua relação com a sociedade”.[58]

 

Na obra Alegorias do subdesenvolvimento, Ismail Xavier retoma a correlação complexa entre análise imanente, continuidades formais e sociedade para analisar a produção do Cinema Novo e do Cinema Marginal entre 1968-1970, durante o período de radicalização do regime militar brasileiro. A partir do conceito de alegoria moderna como expressão “encadeada da crise da teleologia da história”, o autor observa como os filmes internalizaram “a crise política da época na sua construção formal, mobilizando estratégias alegóricas marcadas pelo senso da história como catástrofe”.[59] Mantendo as intrincadas redes entre a análise interna, forma e conjuntura, ao longo dos capítulos “o dado formal é tomado como um caminho na direção do político”.[60] Nesse sentido, o conceito de alegoria é utilizado para analisar a narrativa, a composição visual, as recorrências formais, demonstrando também o surgimento em termos artísticos de uma situação de decepção e niilismo, seja nas obras de fundo pedagógico totalizante, seja nas alegorias antiteleológicas, que se recusam à síntese e internalizam o enigma como princípio formal.

 

Numa entrevista concedida a Mônica Kornis e Eduardo Morettin, Ismail Xavier[61]  retoma alguns parâmetros conceituais utilizados para enfrentar a especificidade cinematográfica por meio da análise estilística. O primeiro deles é a combinação com a análise estrutural, embora os dois campos estejam em franco conflito. A matriz de pensamento estrutural condena a estilística por se concentrar em “detalhes formais” e se deter em “particularidades” para comentar a totalidade de uma obra. Na raiz da disputa está o princípio da análise estilística de encontrar em cada detalhe o “princípio de uma obra inteira”. Do outro lado, a estilística desaprova como a análise estrutural se atém somente à narrativa e à dramaturgia e corre o risco de “dar acesso a generalidades”, deixando de lado o essencial, isto é, a diferença que “marca uma obra”. Através da combinação entre as duas perspectivas, Xavier explica como a estilística traz o desafio de trabalhar os “recursos específicos usados por um cineasta para construir aquele objeto”, fundados na “técnica” e na “materialidade do processo”, isto é, na postura da câmera, na composição da imagem, na montagem, na encenação, etc. Se o trabalho do estilo implica sempre numa escolha e intenção expressa pelo cineasta em relação à pluralidade de opções técnicas, o “nível estilístico” é capaz de contemplar as técnicas e “a matéria específica de que se faz o discurso”.

 

No campo da historiografia do cinema, Eduardo Morettin[62] analisa a produção documental do cineasta Humberto Mauro no Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) por meio da articulação extremamente minuciosa entre a análise estética, a pesquisa histórica com vastíssima documentação de arquivos e a ação do contexto sociopolítico, seja no discurso das obras, seja na tentativa de controle e padronização da produção cultural pelo Estado Novo. Observando uma construção sofisticada de alinhamentos e tensões presentes na materialidade fílmica, na disjunção e comentários irônicos entre imagem e trilha musical, na configuração dos pontos de vista narrativos e no discurso ideológico de O descobrimento do Brasil (1937) e Os Bandeirantes (1940), Morettin examina em detalhes como se dá a alternância em cada obra entre a monumentalização histórica, a presença ou ausência de tom celebrativo e um registro melancólico e nostálgico na mise en scène. Dessa forma, o primeiro grande autor do cinema silencioso brasileiro é visto num lugar ambivalente entre o perfil de funcionário do INCE, de cineasta autônomo e colaborador num projeto ideológico em torno do cinema educativo, demonstrando como a mobilização ininterrupta entre variadas fontes documentais e a análise imanente permite uma avaliação sofisticada da presença do componente sociopolítico na materialidade fílmica.

             

Notas.

[1] Para maiores detalhes sobre as definições do CineArte, ver a ementa registrada na base de grupos de pesquisa do CNPQ.

[2] Ver. AUMONT, Jacques. À quoi pensent les films. Paris: Séguier, 1996.

[3] Ver. AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. A análise do filme. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2013.

[4] Idem, ibidem, p. 6.

[5] Idem, ibidem, p. 6.

[6] Idem, ibidem, p. 14.

[7] Idem, ibidem, p. 15.

[8] Escritas por estudantes profissionais ou críticos, publicadas em revistas especializadas, tais fichas tinham como objetivo principal “fornecer ao espectador neófito a documentação suficiente para lhe permitir situar o filme e seu autor, e alimentar uma discussão após a projeção” Em pauta especialmente durante as décadas que seguem à fundação do IDHEC (1945), as mesmas eram compostas por uma estrutura triádica, bastante retomada por outros analistas. Isso inclui: uma parte informativa; uma parte analítica e descritiva, com sequências ou resumo do filme; chegando-se, por fim, às questões sugeridas para o moderador do debate. Ver. AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Op. Cit., p. 26.

[9] PENAFRIA, Manuela. Análise de filmes - conceitos e metodologia(s). VI Congresso SOPCOM, abril de 2009, p. 1.

[10] Idem, ibidem, p. 1.

[11] BORDWELL, David; STAIGER, Janet; THOMPSON, Kristin. The classical Hollywood cinema - film style & mode of production to 1960. London: Routledge, 2005, p. 277.

[12] BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. A arte do cinema - uma introdução. Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Editora da USP, 2013.

[13] BORDWELL, David; STAIGER, Janet; THOMPSON, Kristin. Op. Cit., p. 278.

[14] Ver. BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. Op. cit., 2013.

[15] WÖLFFLIN, Henrich. Conceitos fundamentais da história da arte: o problema da evolução dos estilos na arte mais recente. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 319.

[16] RIEGL, Alois. Die spätrömische Kunstindustrie nach den funden in Österreich-Ungarn. Wien: Osterreichische Staatsdruckerei, 1927, p. 401.

[17] PANOFSKY, Erwin. The Concept of Artistic Volition. Critical Inquiry, Chicago, outono 1981. p. 26.

[18] LAVIN, Irving. Introduction. In: PANOFSKY, Erwin. Trois essais sur l´style. Paris: Éditions Gallimard, 1996, p. 24.

[19] Ver SCHAPIRO, Meyer. Estilo. Buenos Aires: Ediciones 3, 1962. Titulo original “Style”. In: KROBER, A.L. (ed.). Antropology today. Chicago: The University of Chicago Press.

[20] Ver. BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz: a encenação no cinema. Campinas: Papirus, 2008; BORDWELL, David. Sobre a história do estilo cinematográfico. Campinas: Unicamp, 2013.

[21] Ver. BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. Op. Cit.

[22] Ver BORDWELL, David; STAIGER, Janet; THOMPSON, Kristin. Op. Cit.

[23] BORDWELL, David. Sobre a história do estilo cinematográfico. Campinas: Unicamp, 2013, p.17.

[24] Ver BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. Op. Cit.

[25] BORDWELL, David. Op. Cit., 2013. p. 205.

[26] Idem, ibidem, p. 212.

[27] SCHAPIRO, Meyer. Op. Cit.

[28] AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

[29] CUROT, Frank. Styles filmiques 1. Études cinématographiques vol. 65. Paris/Caen: Lettres Modernes/Minard, 2000.

[30] Ver. BORDWELL, David. Op. Cit., 2008 e BORDWELL, David. Op. Cit., 2013.

[31] BORDWELL, David. Op. Cit., 2008. p. 33.

[32] BAECQUE, Antoine de. Cinefilia - invenção de um olhar, história de uma cultura 1944-1968. São Paulo: Cosac Naify, 2010 [2003].

[33] Ver BERNARDET, Jean-Claude. O autor no cinema: a política dos autores; França, Brasil anos 50 e 60. São Paulo: Brasiliense/Edusp, 1994.

[34] ASTRUC, Alexandre. “Nascimento de uma nova vanguarda: a ‘câmera-stylo”. In: OLIVEIRA, Luís Miguel (org.). Nouvelle vague. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1999, p. 320 e 322.

[35] “Para nós, o cinema está a encontrar uma forma, através da qual se tornará numa linguagem tão rigorosa que o pensamento poder-se-á escrever diretamente sobre a película, sem mesmo passar pelas associações pesadas de imagens que fizeram as delícias do cinema mudo”. ASTRUC, Alexandre. Op. Cit. 

[36] Ver. BAECQUE, Antoine de. Op. Cit. e  BERNARDET, Jean-Claude. Op. Cit.

[37] Ver. BAECQUE, Antoine de. Op. Cit.

[38] Ver. BERNARDET, Jean-Claude. Op. Cit.

[39] BORDWELL, David. Op. Cit., 2013, p. 114.

[40] SCHAPIRO, Meyer. Op. Cit.

[41] BORDWELL, David. Op. Cit., 2008.

[42] SCHAPIRO, Meyer. Op. Cit., p. 53.

[43] BAZIN, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.

[44] Para maiores detalhes sobre a articulação em André Bazin entre o contexto, a arqueologia das mídias e análise interna das obras ver ADAMATTI, Margarida. André Bazin e a intermidialidade - por uma historiografia impura do cinema. Rumores. São Paulo, v. 12, n. 23, jan./jul. 2018.

[45] BERNERDET, Jean-CLude. Op. Cit., 1994.

[46] DAHL, Gustavo. Sobre o argumento cinematográfico. In: COSTA, Flávio Moreira da (org.). Cinema moderno, Cinema Novo. Rio de Janeiro: José Álvaro, 1966, p. 23.

[47]Ver PASOLINI, Pier Paolo. Storie della città di dio, racconti e cronache romane, 1950-66.  Torino: Giulio Einaldi, 1995.

[48] PASOLINI, Pier Paolo. Passione e ideologia. Torino: Giulio Einaldi, 1985, p. 146.

[49] Ver. PASOLINI, Pier Paolo. A poesia do novo cinema. Revista Civilização Brasileira, n.7, maio 1966.

[50] PASOLINI, Pier Paolo. L' expérience hérétique: langue et cinéma. Trad. Anna Rocci Pullberg. Paris: Ramsay, 1989 [1972], p. 51

[51] Para mais informações sobre o debate do estilo em Pasolini, entre cinema e teoria escrita, ver UCHOA, Fabio Raddi. Pasolini e Candeias: a coexistência de estilos na obra de dois cineastas modernos. Revista Diálogos Mediterrânicos. Curitiba, v. 9, 2015. Para uma pesquisa de maior fôlego em diálogo com o estilo indireto livre tomado como método, ver UCHÔA, Fábio Raddi. Ozualdo Candeias e o cinema de sua época (1967-83) - perambulação, silêncio e erotismo. São Paulo: Alameda, 2019.

[52] CANDIDO, Antonio. Crítica e sociologia. In: Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p. 13-26.

[53] Para maiores detalhes sobre as relações entre Jean-Claude Bernardet e Antonio Candido ver ADAMATTI, Margarida. Crítica de cinema e repressão - estética e política no jornal alternativo Opinião. São Paulo: Alameda, 2019.

[54] BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em Tempo de Cinema. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [1967].

[55] Para maiores detalhes sobre o método de análise de Jean-Claude Bernardet em relação a Lucien Goldman, ver ADAMATTI, Margarida Maria. Brasil em Tempo de Cinema como método de análise fílmica de Jean-Claude Bernardet. Revista E-Compós, Brasília, v. 19, n. 3, set./dez. 2016.

[56] Ver. XAVIER, Ismail. O cinema e os filmes ou doze temas em torno das imagens. Entrevista Ismail Xavier. Entrevista concedida a Pedro Plaza Pinto, Mariana Baltar Freire, Fernando Morais e Lécio Augusto Ramos. Contracampo. Niterói/São Paulo, mar./abr./out. 2002. Ver também, XAVIER, Ismal Arte é desafio, provocação: uma entrevista com Ismail Xavier. Entrevista concedida a José Gatti. Rebeca (Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual). São Paulo, ano 3, n. 6, jul./dez. 2014.

[57] XAVEIR, Ismail. Sertão Mar - Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac & Naif, 2007 [1983], p. 16.

[58] Idem, ibidem, p. 18.

[59] XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento - Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012 [1993], p. 13 e 35.

[60] Idem, ibidem, p. 31-32.

[61] XAVIER, Ismail. Entrevista com Ismail Xavier. Entrevista concedida a Mônica Almeida Kornis e Eduardo Morettin. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 26, n. 51, jan./jun. 2013, p. 8.

[62] MORETTIN, Eduardo. Humberto Mauro, Cinema, História. São Paulo: Alameda, 2013.

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